Direitos no capitalismo de vigilância: o debate mexicano



Esse é o ano do México na arena internacional de governança da Internet. Ao menos diplomaticamente. O país sediou em junho o encontro interministerial da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), cujo mote foi "políticas para economias digitais". Na próxima semana, organizará o Fórum da Governança da Internet, um encontro anual tutelado pela Organização das Nações Unidas que reúne os principais ativistas e funciona como "espaço de troca de saberes" de organizações civis.

Em junho participei do encontro da OCDE e falei, em nome do Idec, em um painel do CSISAC, um conselho de assessoria da sociedade civil. Na próxima semana, volto ao México para acompanhar as discussões do IGF.

Compartilho aqui algumas notas do encontro de junho, destacando debates -- especialmente as apresentações de Soshana Zuboff e Bruce Schneier --, pessoas e organizações que vale a pena acompanhar de perto.

O que é o CSISAC e qual seu papel na OCDE?
O CSISAC -- abreviação de Civil Society Information Society Advisory Council -- foi criado na década de 1990 em razão do trabalho de um advogado e ativista estadunidense chamado Marc Rotenberg. Na época, o objetivo de Rotenberg -- hoje presidente da Electronic Privacy Information Center (EPIC) -- era pressionar a OCDE a ouvir a sociedade civil em suas reuniões sobre comércio eletrônico e economias baseadas na Internet. Após um período de existência informal, apenas como fórum independente, o conselho foi formalmente criado dentro do Comitê de Políticas de Economia Digital (Committee on Digital Economy Policy).

Em 2008, o CSISAC foi consultado para elaboração da Seoul Declaration For The Future of The Internet Economy, documento que resultou da reunião interministerial realizada em junho de 2008 em Seoul, na Coreia do Sul. O encontro realizado no México foi a terceira reunião interministerial focada em "economia digital". Antes dessa, ocorreram somente duas reuniões do mesmo tipo: a já mencionada reunião de Seoul sobre o "futuro da economia da Internet" e uma reunião sobre a expansão do comércio eletrônico, realizada em 1998 em Ottawa, no Canadá.

Há quase vinte anos, a OCDE reconheceu a importância de decisões baseadas na ampla consulta de partes interessadas, não só governos. No documento oficial do encontro, destacou-se que "a cooperação entre todas as partes (governos, consumidores, empresas, trabalhadores e instituições públicas) bem como o diálogo social devem ser encorajados na formulação de políticas". Eis um exemplo daquilo que é chamado hoje de multistakeholderism -- a tentativa de reunir as várias partes interessadas (stakeholders) num objeto de política.

É nessa jogada que entram as ONGs. Como o encontro foi agendado para Cancún, no México, as fundações que financiam o ativismo na América Latina -- Ford Foundation e Open Society Foundations -- anunciaram que apoiariam a participação de organizações latino-americanas nesse encontro. O Idec foi uma das organizações que recebeu apoio financeiro para participar da reunião da OCDE. Além disso, fomos convidados para participar de um painel do CSISAC para discutir o impacto das plataformas de compartilhamento (Airbnb) e serviços sob-demanda (Uber) para trabalhadores e consumidores.

A preocupação da OCDE com regulação da economia informacional é antiga. Como lembrado por Ekaterina Drozdova, ela foi a primeira organização internacional a publicar um documento sobre regulação do processamento de dados, com enfoque no uso e processamento pelos setores público e privado e as ameaças existentes a liberdades individuais (o "Guidelines on the Protection of Privacy and Transborder Flows of Personal Data", de 1980).

Muitos debates atuais são desdobramentos de preocupações antigas da comunidade em torno da OCDE.

Zuboff e o debate dos ativistas
As organizações civis presentes em Cancún tiveram o dia 21 de junho inteiro para explorar mais a fundo questões que preocupam os ativistas com relação à Internet e direitos digitais. Foi nesse dia que o ocorreu o The Civil Society Forum, com o título Towards an Inclusive, Equitable, and Accountable Digital Economy.

O keynote speach -- a palestra que define a tônica de todo o encontro -- foi feita pela professora Soshana Zuboff, pesquisadora do Berkman Center for Internet & Society. Em sua fala de quarenta minutos, Zuboff explicou por que a empresa Google estabeleceu um novo paradigma produtivo para o capitalismo e de que modo o surveillance capitalism cria novos processos de comodificação, manipulação de comportamentos e extração de valor da multidão. Ao mesmo tempo, esse modelo de mercado possibilita um "duplo movimento" de que falava Karl Polanyi: atritos, protestos e reações daqueles que buscam controle social democrático, transparência e garantia de direitos.

Na sequência, Cédric Laurant (Articulo 12, México) moderou uma mesa com várias ativistas de liderança, incluindo Anriette Esterhuysen (Association for Progressive Communications) -- indicada ao Internet Hall of Fame em razão de sua militância por justiça social e participação --, Katitza Rodriguez (Eletronic Frontier Foundation), Paulina Gutiérrez (Artigo 19, México) e Fanny Hidvegi (Eletronic Privacy Information Center). A mesa reavaliou as recomendações feitas em 2008, criticou o falso balanço entre "privacidade e segurança" (não se trata de uma escolha entre um e outro) e denunciou o aparato de vigilância em massa sendo construído sob pretexto de combate ao terrorismo.

No painel seguinte, a colombiana Carolina Botero (Fundación Karisma) moderou um painel sobre "temas emergentes" para a sociedade civil. Chamou atenção a fala do professor Wolfgang Kleinwächter (University of Aarhus) sobre o "velho debate" da Internet das Coisas e os riscos de vida que ataques cibernéticos podem provocar, as críticas de Carolina Rossini (Public Knowledge, hoje no Facebook) sobre os riscos de censura prévia causados pelo Trans-Pacific Partnership Agreement on Intellectual Property (TPP) e o alerta da jovem Amie Stepanovich (Access Now) sobre a necessidade de princípios baseados em direitos humanos para regulação das políticas de cybersegurança.

Capitalismo de vigilância, coleta massiva de dados por governos e empresas e guerras cibernéticas foram os temas que dominaram a primeira parte do debate.

Schneier e a dificuldade de uma agenda positiva
O segundo keynote do encontro das organizações civis foi feito por Bruce Schneier, um dos criptógrafos e especialistas em segurança da informação mais prolíficos e respeitados do mundo. Schneier é conhecido pelo amplo domínio de matemática e computação e a forma como sua expertise técnica é utilizada em análises sociológicas sobre o uso dos dados na sociedade e a construção de confiança em relações sociais. Um exemplo é seu livro Data and Goliath: The Hidden Battles to Collect Your Data and Control Your World.

Schneier problematizou três questões: a vulnerabilidade dos sistemas de comunicação e a ausência de controle social dos mecanismos de segurança -- pela própria falta de percepção de como funcionam os dispositivos de vigilância --, as narrativas governamentais de combate à criptografia por questões de combate ao terrorismo e o problema do "vigilantismo perfeito" -- por objetos computadorizados em todas as partes, coletando todas movimentações e usos de tais objetos por nós --, que pode levar à ausência de capacidade de mobilização social para contestação de leis e a emergência de um novo tipo de movimento social pela desconexão.

Em um exercício de futurologia, Schneier afirmou que, em breve, quando tudo estiver conectado à internet, teremos disputas sociais pela desconexão (uma ideia contra-intuitiva, considerando que os movimentos sociais estão alinhados pela conexão à internet como direito básico de exercício da cidadania). Isso pode acontecer, a não ser que sejamos capazes de mudar esse cenário de vigilância massiva. Para isso, é preciso começar a falar sobre vigilância e entender que o design de sistemas tem uma dimensão coletiva e individual. A extração de dados tem valor e importa para a sociedade como um todo. Mas, ao mesmo tempo, os dados possuem valor para nós individualmente. Para Schneier, é preciso uma abordagem mais acessível para o funcionamento dos sistemas sócio-técnicos.

A discussão sobre plataformas P2P
O último painel do CSISAC foi um debate feito em cooperação com os sindicatos dos trabalhadores e teve como objeto central a regulação das plataformas peer-to-peer, popularmente chamadas de "economias do compartilhamento".

A OCDE, com a ajuda da Universidade de Amsterdã, elaborou um texto de discussão sobre a regulação de tais plataformas e o enfoque nos direitos dos consumidores. Para a organização, há várias questões emergentes nessa discussão regulatória. Primeiro, com relação à transparência dos algoritmos e do modo como interações são mediadas para fins comerciais. Segundo, com relação aos sistemas reputacionais e a centralidade de tais sistemas para a formação de confiança entre os pares (há redução de assimetria de informações com a integração dos comentários com redes sociais, mas como garantir que não há exclusão de comentários ou modificação proposital dos mesmos para favorecer o uso de uma plataforma?). Terceiro, com relação ao uso de dados pessoais e a monetização de informações agregadas geradas nessas plataformas.

No painel, abordei tais questões e ataquei a estratégia de várias grandes plataformas (Uber e Airbnb, por exemplo) de fugir da aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas relações entre usuários e plataforma. Defendi a possibilidade de direito de transferência de "sistemas reputacionais" como medida de estímulo à competição -- o que gera um problema não resolvido de padrões mínimos de harmonização e compatibilidade de bancos de dados -- e supervisão governamental com relação à gestão das plataformas na comunicação gerada pelos usuários e no processamento de dados pessoais (algo também defendido em uma apresentação para o seminário do Comitê Gestor da Internet).

O debate foi feito com Daniel Therrien, Privacy Comissioner do Canadá, Vincenzo Spiezia, economista da OCDE, Bhaivari Desai, do sindicato dos taxistas de Nova Iorque, e Fredrik Söderqvist, da Unionen da Suécia. As opiniões entre Desai e Söderqvist foram polarizadas. Enquanto o economista sueco defendeu a expansão das plataformas e ressaltou a necessidade de mais evidências sobre "detrimentos aos consumidores" (um termo bastante utilizado nos textos da OCDE), Desai argumentou que grandes plataformas de serviços sob demanda estão precarizando o trabalho dos motoristas nos EUA e que a preferência do consumidor não pode ser tomada como fator determinante para as discussões regulatórias.

Uma lição importante: academia e ativistas
Apesar de aparentemente desconectados, os debates promovidos pela sociedade civil na reunião da OCDE possuem muitos pontos de convergência. Eles estão todos centrados nas transformações econômicas recentes, na ascensão completa dos computadores e algoritmos, e nos desdobramentos de uma economia baseada na informação que depende da coleta massiva de dados.

Diferentemente dos discursos centrados apenas em "desenvolvimento econômico" e promoção de empregos -- que é típico dos ministros que participam da OCDE --, ativistas e acadêmicos desse fórum trataram de ameaças de liberdades civis, imunidades jurídicas e regulação baseada em direitos. Mostraram, ainda, que muitas discussões teoricamente sofisticadas da academia estão profundamente ligadas às práticas dos ativistas e dos movimentos sociais.


Há, aí, uma oportunidade de retroalimentação. Ativistas podem atuar política e discursivamente a partir de conceitos mais claros e compreensão das estruturas dos sistemas sócio-técnicos, do mesmo modo que acadêmicos podem produzir teorias mais problematizantes, que nos fazem enxergar "para além dos limites da nossa linguagem", a partir do diálogo constante com movimentos por direitos na era da vigilância.

Um comentário:

  1. UM MOMENTO, APENAS UM!, SUI GENERIS. EIS:

    Em 2016 houve fato fabuloso sim, apesar de Vanessa Grazziotin falar que não, dessa forma assim:

    "O ano de 2016 é, sem dúvida, daqueles que dificilmente será esquecido. Ficará marcado na história pelos acontecimentos negativos ocorridos no Brasil e no mundo. Esse é o sentimento das pessoas", diz Grazziotin.

    Mas, por outro lado, nem que seja apenas 1 fato positivo houve sim! É claro! Mesmo que seja, somente e só, um ato notável, de êxito. Extraordinário. Onde a sociedade se mostrou. Divino. Que ficará na história para sempre, para o início de um horizonte progressista do Brasil, na vida cultural, na artística, na esfera política, e na econômica. 
    Que jamais será esquecido tal nascer dos anos a partir de  2016, apontando para frente. Ano em orientação à alta-cultura. Acontecimento esse verdadeiramente um marco histórico prodigioso. Tal ação acorrida em 2016 ocasionou o triunfo sobre a incompetência. Incrementando sim o Brasil em direção a modernidade, a reformas e mudanças positivas e progressistas. Enfim: admirável. 

    Qual foi, afinal, essa ação sui-generis?

    Tal fato luminoso foi o:

    -- «Tchau querida!»

    Eis aí um momento progressista, no ano de 2016. Sem PeTê.

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