Reagindo aos ataques à Internet no Brasil: por dentro da Coalizão Direitos na Rede

Semana passada estive em Porto Alegre, onde participei de dois eventos da "comunidade política da Internet": o VI Fórum da Internet no Brasil e o 17º Fórum Internacional de Software Livre.

Os dois eventos são bem distintos. O Fórum da Internet no Brasil é organizado pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br) e tem por objetivo definir diretrizes para governança da Internet. As discussões vão desde coisas mais técnicas, como a transição do IPV4 para IPV6, até debates mais sensíveis ao usuário comum, como direitos de uso da Internet e as famigeradas franquias de dados. O público é bem diverso: participam técnicos, representantes do governo, empresários, pesquisadores e ativistas de ONGs.

Já o Fórum Internacional de Software Livre, além de ser mais antigo, tem uma pegada mais "coder", focada em tecnologia e liberdade. Como afirmado pelos organizadores, desde o início o FISL tem militado "pela manutenção da transparência na tecnologia, seja nos códigos, nos padrões abertos, na luta pela internet livre e neutra". O Fórum é encabeçado por duas fortes redes de ativistas: a Associação Software Livre, de Porto Alegre, e o Projeto Software Livre, uma rede de abrangência nacional. O público também diverge do Fórum do CGI. É muito menos dominado pelo público de policy e mais voltado à criação, "hackerspaces" e empresas que defendem programação aberta.

Ambos eventos, no entanto, possuem pontos de convergência. Há uma enorme preocupação com direitos e ampliação da autonomia humana no uso da Internet. Não é por acaso que usei o espaço (e o momento do encontro) desses dois eventos para falar um pouco mais, junto com muitos(as) outros(as) parceiros(as), da Coalizão Direitos na Rede -- uma rede de ativistas recém-criada e dedicada ao combate aos retrocessos em direitos digitais no Brasil.

Aproveito esse texto para compartilhar uma visão interna de como essa coalizão surgiu e por que ela se faz necessária no Brasil hoje.



Um pouco de contexto: golpe, retrocessos e "baratas tontas"
Parece existir uma constante na história dos movimentos sociais do início deste século, em especial aqueles que trabalham com temas relacionados à Internet: os grupos se unem quando há uma grave ameaça a direitos; uma ameaça tão grande que trabalhos isolados seriam insuficientes e impotentes. Foi assim com o Stop SOPA capitaneado por Aaron Swartz (Demand Progress). Foi assim com as ameaças à neutralidade de rede em 2014 e a Global Net Neutrality Coalition.

No Brasil, esse movimento reativo e aglutinador também aconteceu com o Marco Civil da Internet. Foi em razão dos projetos de lei de criminalização dos usuários e de coleta de dados que surgiram movimentos como o Mega Não e, após um esforço de criação jurídica civil (iniciado por Ronaldo Lemos), o Movimento Marco Civil Já -- uma ampla coalizão de instituições e ONGs apoiadores de um projeto de lei que estabelecia direitos para uso da Internet (o que hoje é a Lei 12.965/2014).

É significativo que o Movimento Marco Civil Já tenha ganhado forças em 2014 quando Eduardo Cunha defendia abertamente as empresas de telecomunicações e tramava uma mudança nas regras de neutralidade de rede (ver o texto "Quando a política bloqueia direitos", escrita no fervor dos acontecimentos de março de 2014). Foi diante do risco real de retrocessos que a sociedade civil conseguiu pressionar o governo Dilma para combate e aprovação de um texto em defesa dos usuários -- e não das teles.

O problema de hoje, dois anos depois, é que o cenário político mudou drasticamente. Além do conflito social gerado pelo processo de impeachment de Dilma Rousseff (de bases jurídicas frágeis), houve um desmanche do governo executivo e mudanças nas alianças políticas. Com Michel Temer, o pior aconteceu: as atenções voltaram-se às reviravoltas do governo interino, enquanto que o Congresso Nacional conseguiu aprovar o relatório da CPI Cibercrimes.

A mistura de ingredientes é bombástica. Há um claro declínio de representação dos partidos de esquerda no Congresso, com fortalecimento de uma nova direita dotada de retórica conservadora. Para esses parlamentares, é preciso punir mais. Além disso, foi construída a absurda narrativa de que o Marco Civil da Internet foi uma "lei construída às pressas" pelo governo Dilma. Cresce, cada vez mais, uma partidarização tosca do discurso de direitos civis na Internet. Para a CPI Cibercrimes, é preciso colocar o país nos eixos. Para tanto, é necessário institucionalizar a coleta de dados sem decisão judicial, a derrubada de conteúdo que infrinja direitos autorais e o bloqueio de aplicativos "usados por criminosos".

Participei ativamente desse drama e estava em Brasília quando o relatório foi aprovado. Foi um dia triste, pois era claro o quanto que aqueles parlamentares estavam por fora do debate de governança da Internet. Desconheciam os protestos globais contra a CPI Cibercrimes brasileira. Eram representantes de um discurso raso de que a Internet tem que ser controlada em defesa das pessoas de bem. Eles se recusavam a ouvir os discursos ponderados de Alessandro Molon e João Henrique Caldas -- que pediam calma e compreensão do Marco Civil da Internet.

Aos poucos, os ativistas foram percebendo que o cenário era muito pior do que se imaginava. Abril foi o estopim: ao mesmo tempo, tínhamos o processo de impeachment e a formação do governo Temer, a polêmica das franquias de dados na Internet fixa (na qual me envolvi enormemente pelo Idec), o bloqueio do Whatsapp por decisões judiciais e a aprovação da CPI Cibercrimes, com sinalizações claras de novas leis criminais e mutilações do Marco Civil da Internet.

Em eventos e reuniões da sociedade civil em São Paulo, chegamos a um diagnóstico: as ONGs, sozinhas, não podem correr como baratas tontas para lá e para cá. É preciso um mínimo de organização e coordenação das atividades dos ativistas de direitos digitais. Separados, seremos massacrados. Juntos, temos mais força.

Junho de 2016: Rio, São Paulo e Porto Alegre
Na primeira semana da junho, realizei uma reunião no Idec para traçar estratégias em defesa do projeto de lei de proteção de dados pessoais, construído pelo governo com a sociedade civil. Participaram diversas ONGs, centros de pesquisa e ativistas (muitas delas assinantes da Carta Aberta em Apoio ao PL 5.276/2016). Nesse encontro, chegamos à conclusão de que não bastava fazer novas campanhas sobre proteção de dados pessoais. Faltava uma ação de reação à conjuntura mais ampla.

O diagnóstico não foi feito somente na "base" da sociedade civil. Os financiadores da agenda de direitos digitais rapidamente perceberam que esse era um problema a ser resolvido. De forma ágil, a Fundação Ford convocou uma reunião com todos os seus grantees (organizações que recebem recursos, ou grants para projetos) da agenda de direitos humanos e Internet. Dessa reunião, ocorrida no Rio de Janeiro, surgiu a proposta de uma atuação em rede para denunciar os diferentes ataques à Internet ocorrendo no Brasil.

Infelizmente não participei da reunião no Rio de Janeiro, pois estava no México representando o Idec em um debate da OCDE sobre economias digitais, plataformas P2P e direitos dos consumidores. Assim que voltei, tomei conhecimento da proposta de uma ampla rede de defesa de direitos -- o que se conectava às discussões feitas no Idec, com outros ativistas, sobre uma ação mais robusta. Informalmente, estava criada a Coalizão Direitos na Rede.

Rapidamente, o núcleo duro da Coalizão (formado por membros da Actantes, Artigo 19, Barão de Itararé, Coletivo Digital, GPOPAI – USP, Instituto Bem Estar Brasil, Ibidem, Idec, Intervozes, Nupef e Proteste) se dividiu em tarefas. O primeiro objetivo era definir os dez ataques à Internet brasileira, a partir de três eixos: acesso, privacidade e liberdade de expressão.

A partir da definição dos ataques, a Coalizão assumiu duas tarefas: (i) lançar a Coalizão formalmente no Fórum da Internet em Porto Alegre e (ii) estruturar uma plataforma online para que os mais de 100 milhões de usuários de Internet tomem conhecimento desses ataques.

Internet Sob Ataque: uma campanha promissora
A Coalizão se dividiu em grupos de trabalho específicos, para lidar com retrocessos ligados a acesso à Internet, privacidade e liberdade de expressão.

Passei a colaborar com ativistas da área de comunicação para definição da campanha inaugural do coletivo, intitulada "Internet Sob Ataque". Após uma longa rodada de discussões, chegamos a uma definição de quais são os dez ataques à Internet brasileira:

1- Limite de franquia na banda larga fixa
2- Fim da universalização do acesso
3- Jardins murados na internet (zero rating/quebra de neutralidade de rede)
4- Vigilância em massa nas redes

5- Cadastro universal de usuários
6- Big Brother wi-fi (pontos de conexão coletam dados de navegação)
7 - Livre comércio de dados pessoais (ausência de lei geral e autoridade)

8- Bloqueio de sites e aplicativos
9- O lobby dos direitos autorais (aplicações e sites podem sair do ar por violação de copyright)
10- Censura política digital (exclusão de conteúdo supostamente difamatório)

No início de julho, fizemos uma nova reunião no Idec, com participação de Jules, João (Artigo 19) e Amarela (Coding Rights). Discutimos como que os ataques seriam apresentados e a importância de explicar cada um deles com uma linguagem simples. Decidimos também criar memes e stickers para tornar a comunicação menos espinhosa e mais divertida. Janaína Spode, da Casa da Cultura Digital Porto Alegre, assumiu a tarefa de preparar cartazes e adesivos para impressão na capital gaúcha.


O lançamento em Porto Alegre
O VI Fórum da Internet teve início no dia 11 de julho. De início, três elementos deram a cara do evento de 2016. Primeiro, a significativa redução da participação de membros do governo e do setor empresarial -- o que sinalizou uma possível tentativa de enfraquecimento do Comitê Gestor da Internet pelo governo Temer e parte do empresariado. Segundo, o domínio dos debates sobre franquias de dados -- uma das maiores polêmicas do país este ano. Terceiro, a participação de uma nova geração de jovens pessoas treinadas em governança da Internet, graças ao esforço ativo do CGI e do seu programa "Youth".

Os membros da Coalizão se organizaram para fazer o lançamento oficial da Campanha Internet Sob Ataque no segundo dia, por meio de uma "desconferência". No dia 12 de julho, na parte da manhã, ocupamos uma sala do centro de convenções da FIERGS para discutir as razões de criação da Coalizão, as três frentes de trabalho (acesso/privacidade/liberdade de expressão) e a importância de tornarmos a campanha menos chata e mais bem humorada, brincando com a linguagem da política na rede.

Antes mim, falaram Flavia Lefévre (Proteste), Veridiana Alimonti (Intervozes), Joana Varon (Coding Rights) e Laura Tesca (Artigo 19) -- mulheres de liderança da Coalizão.



O lançamento não teve um impacto significativo, pois ainda não tínhamos a plataforma disponível online e tampouco a campanha plenamente estruturada. O melhor a fazer -- na realidade, a única opção -- era aproveitar o encontro de pessoas interessadas em governança da Internet para sensibilizar e, quem sabe, conseguir mais membros para nossa Coalizão.

No dia seguinte, participei de um debate do filme Freenet e fiz a apresentação da Coalizão no Fórum Internacional de Software Livre, onde conheci o trabalho de ativistas gaúchos. Lá o espírito era mais anárquico e o debate ocorreu no meio do saguão livre (onde qualquer um poderia sentar, ouvir o debate, pedir a palavra e discutir os ataques à Internet). Sem surpresas, a discussão sobre franquias de dados dominou boa parte do tempo de nossa intervenção.


A defesa do CGI e o "compartilhaço" da Coalizão
Essa semana, a Coalizão realizou sua segunda ação significativa. Em resposta a uma matéria da Folha de São Paulo que especulava sobre possíveis mudanças no Comitê Gestor da Internet, a Coalizão preparou um longo texto para rebater todos os argumentos da Folha e explicar por que as empresas de telecomunicações querem minar o modelo pluriparticipativo do CGI.br.

Escrito a várias mãos, o texto foi divulgado hoje (20/07) -- um dia após a polêmica do bloqueio do Whatsapp pela terceira vez no Brasil -- juntamente com uma ação nas redes sociais para divulgação da campanha #InternetSobAtaque. Em poucas horas, o texto teve duzentos compartilhamentos e atingiu quase dez mil pessoas.



O texto da Coalizão ataca os rumores de que Temer, Kassab e as teles querem mexer na composição do Comitê Gestor -- conhecido mundialmente como exemplo de instituição de governança democrática da Internet (onde sentam juntos ONGs, governo, acadêmicos, técnicos e empresas).

Afirmamos que "uma mudança do CGI.br por decreto, sem debates e sem ampla participação democrática seria uma violência ilegítima rechaçada por toda a comunidade internacional". Defendemos, com unhas e dentes, o modelo de gestão do CGI.br, que torna difícil a captura por grandes grupos econômicos, em especial os players globais de infraestrutura.

Há luz no fim do túnel?
O cenário brasileiro é péssimo, todos nós sabemos. Existe um governo provisório criado para empresários e uma fortíssima onda conservadora no Congresso Nacional. A agenda de inclusão digital e cultura digital -- construída de forma pioneira pela equipe montada por Gilberto Gil no Ministério da Cultura e continuada pelos servidores do Ministério da Justiça do governo Dilma -- está sendo estraçalhada e abandonada.

Nossa única alternativa é a pressão popular, o trabalho estratégico em advocacy e o fortalecimento de nossas redes de ativismo, tornando as discussões "técnicas" relacionadas à Internet mais acessíveis. O trabalho da Coalizão baseia-se nessa crença, consciente de que o trabalho não será nada fácil e demandará enorme esforço coletivo e união. Isso, pelo menos, é o que eu acredito.

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