A neutralidade de rede e o futuro da internet

Em março deste ano, em uma discussão sobre "como a internet funciona" promovida pelo Núcleo de Direito, Internet e Sociedade da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (NDIS-USP), perguntei para o experiente engenheiro Rodolpho Eckhardt qual era a questão que nós, juristas, deveríamos nos preocupar com relação à regulação da internet no Brasil. Sem hesitar, ele respondeu para nosso pequeno grupo de pesquisadores reunidos em uma pequena e velha sala no Largo São Francisco: "a questão mais importante hoje é a neutralidade de rede".

A preocupação de Rodolpho é pertinente. Afinal, há uma batalha - pouco notada e comentada - no Brasil sobre a utilização do direito enquanto moldura normativa garantidora de liberdades para o uso da internet. Apesar da longa tramitação do projeto de lei 2126/2011 - o Marco Civil da Internet -, ainda são poucas as discussões sobre a possibilidade dos provedores de acesso exercerem discriminação sobre os fornecedores de conteúdo e a necessidade da positivação do princípio da neutralidade de rede. É preciso reverter o quadro de desconhecimento generalizado sobre a neutralidade de rede. Esse é um esforço coletivo: estimular o aprendizado sobre o funcionamento da internet e as possíveis estruturas regulatórias - regulações por normas ou regulação pela arquitetura, como esclarece Lawrence Lessig - que inevitavelmente impactarão as nossas vidas em um futuro muito breve.

O ponto de partida deve ser uma compreensão mínima sobre o que é a neutralidade de rede. Teoricamente, segundo a informação produzida de forma colaborativa pelo Wikipedia, a "neutralidade da rede (ou princípio de neutralidade) significa que todas as informações que trafegam na rede devem ser tratadas da mesma forma, navegando à mesma velocidade, ou seja, na velocidade da contratação. É esse princípio que garante o livre acesso a qualquer tipo de informação na rede". Para os acadêmicos, a referência obrigatória para compreensão do termo é o texto Network Neutrality, Broadband Discrimination, de Tim Wu (2003), da Columbia University Law School. Segundo Wu, a neutralidade de rede é um princípio muito simples, "que sugere que você tem o direito de acessar a informação que quiser, é sobre a liberdade das pessoas de se comunicarem. Diz respeito à liberdade de expressão no nosso tempo, pois protege o direito de pessoas criarem websites, blogs, páginas wikis, o que for, e poder alcançar outros usuários. É algo que consideramos implícito na internet, mas sem isso a internet não é nada, sem isso a internet seria apenas como a televisão, ou qualquer outro meio onde você recebe informação de forma passiva. É um princípio muito importante se os usuários quiserem preservar o dinamismo e a liberdade que a internet nos trouxe”.

Os esforços mais notáveis de explicação didática sobre a neutralidade de rede são os de Ronaldo Lemos, professor da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro e um dos mentores do projeto de lei (ver a explicação de Lemos na Globo News sobre a importância de uma norma civil sobre a internet). Lemos, há anos, tem batido na mesma tecla: a neutralidade de rede é um dos pilares principiológicos da internet ("Da mesma forma que a Constituição diz que todos são iguais perante a lei, o princípio da neutralidade da rede diz que todos os usuários e conteúdos devem ser iguais perante a rede. Essa ideia, longe de ser um tecnicismo de pouca importância, é o pilar da internet. Ela mantém a rede aberta à inovação, à competitividade e à livre iniciativa, à liberdade de expressão e a melhores serviços para o usuário").

No Brasil, assim como em todo o mundo, as empresas de telecomunicações apresentam diversos argumentos para haja discriminação do conteúdo e precificação (ou mesmo taxação) do tipo de dado que é trafegado na rede. Os argumentos, em síntese muito simplificada, são: (i) prioridades na rede são necessárias para futuras inovações (não há incentivos para se investir em fibra ótica as companhias não pagassem para ter suas vantagens), (ii) a internet já não é neutra por influência do servidor, e (iii) o trafego na internet tem crescido demais, limitando a quantidade de banda disponível.

Para as grandes empresas privadas do ramo, a alternativa é criar "pacotes de serviços baseados no conteúdo", o que rompe com o princípio basilar da neutralidade de rede. Ronaldo Lemos descreve com precisão o quão preocupante é o cenário: "Sem neutralidade, a internet fica parecida com a TV a cabo. Os provedores de conexão passariam a oferecer diferentes 'pacotes' de serviço. O básico daria acesso apenas a e-mails e mensagens instantâneas. Já o 'premium' permitiria acessar música e redes sociais. O 'superpremium' permitiria então acesso a vídeos e download de arquivos. Essa situação, hoje impensável, surge no horizonte quando a rede deixa de ser neutra. Em vez de uma, aparecem várias internets restritas, sem os serviços que caracterizam a experiência completa da rede. Mais grave, os provedores ganhariam o poder de bloquear ou dificultar conteúdos e serviços. Por exemplo, poderiam bloquear o Skype, evitando a competição com a telefonia. Ou ainda reduzir a velocidade de carregamento de vídeos, evitando a competição com serviços de 'triple play'".

Para Tim Wu, o argumento das empresas privadas é completamente infundado. Trata-se de uma estratégia para controle dos usuários de internet que fere as liberdades básicas desfrutadas nas últimas décadas. Em entrevista a Joana Ferraz (CTS/FGV), Wu explicou o quão falaciosa é a argumentação: “Às vezes ouço empresas afirmarem que, se temos neutralidade de rede, não poderemos vender pacotes distintos, mas esse é um argumento equivocado. É perfeitamente legítimo que o provedor de internet ofereça uma internet mais rápida ou mais banda por um preço mais alto, da mesma forma como, ao usarmos mais eletricidade, pagamos mais. Isso é normal e não diz respeito à neutralidade de rede. Mas o que eles querem fazer é ter o poder de bloquear certas coisas e forçar você a consumir outras, cobrando preços diferentes para o tipo de conteúdo que se acessa. Isso será ruim para todos, será como a TV a cabo funciona, será mais caro e pior. É isso o que eles querem. Ter acesso a uma internet mais rápida, por um preço um pouco maior é OK, mas todos esses pacotes malucos são ruins para o consumidor.”

Se "informação é poder", como bem lembrava Aaron Swartz, a estratégia das grandes empresas de telecomunicação - interessadas nos novos e lucrativos modelos de negócio que podem surgir uma vez dinamitado o princípio da neutralidade de rede - parecer ser dupla: (i) lobby no Congresso para que a Agência Nacional de Telecomunicações regule questões como a neutralidade de rede (cf. 'Anatel decide regular, regulamentar e fiscalizar a neutralidade de rede') e (ii) o abafamento das discussões, para que o menor número de pessoas fiquem cientes sobre a importância do debate.

As pressões nos bastidores e nas agências reguladoras parecem extremamente eficientes. Como relata Luís Grossman, ao definir em 23/5 um novo regulamento para o Serviço de Comunicação Multimídia, (norma sobre o provimento de acesso à Internet por redes fixas), a Anatel acabou por inserir a neutralidade de rede no texto final aprovado pelo Conselho Diretor. A apresentação da Anatel sobre o regulamento foi disponibilizado pelo grupo Convergência Digital.



A estratégia progressista, que acredita na neutralidade de rede como elemento normativo que protege os interesses dos usuários de uma internet que nasceu livre, deve então ser dupla: (i) lobby de raiz (grassroots) em rede para que os representantes do Legislativo assegurem a neutralidade de rede - e esse será um embate que se dará no campo jurídico - e (ii) compartilhamento de informação com estratégias pedagógicas, para que as pessoas se eduquem e formem juízos de valor a respeito do tema.



Pessoalmente, ainda acredito na alternativa progressista. A estratégia política do blog E-mancipação, vale ressaltar, é justamente esta: compartilhar, dentro dos limites cognitivos daquele que escreve, informações pouco discutidas nos grande veículos de comunicação para uma formação cidadã de orientação crítica. Obviamente, há muito mais por trás da discussão sobre a neutralidade de rede (a favor e contra). Esse é apenas um estímulo para o debate. O que é inegável é que esse é um tema da maior importância - e que não pode ser deixado de lado diante das revoltas de Junho que tomam conta do país.

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